Norma Culta 4.0: quem manda na língua agora?
Sobre a influência da inteligência artificial no uso formal do idioma.
Norma culta feita por inteligência artificial.
Essa frase pode soar estranha à primeira vista. Parece até uma contradição em termos. Mas a verdade é que ela está muito mais próxima de se tornar realidade do que você imagina.
Para entender como chegamos até aqui, é preciso voltar um pouco no tempo — e contar uma história que envolve uma reviravolta profunda na forma como definimos o que é “certo” ou “elegante” na língua portuguesa.
A origem da norma culta
Durante muitos e muitos anos, a ideia de norma culta esteve diretamente associada ao trabalho dos grandes nomes da literatura.
Eram os autores consagrados — Machado, Camões, Clarice, Guimarães Rosa — que, com seu talento, estabeleciam os padrões do bom uso do idioma.
A lógica era simples: se esses escritores foram capazes de extrair o máximo da expressividade da língua, então seus textos deveriam ser tomados como modelos.
Em outras palavras, escrever bem era, basicamente, escrever como os grandes.
Mas uma iniciativa mudou tudo.
A virada de chave de 1969
Em 1969, teve início um projeto que colocaria essa lógica de cabeça para baixo: o NURC — Norma Urbana Culta.
Esse estudo de grande porte foi conduzido em várias capitais brasileiras e teve como objetivo registrar e analisar o uso real da língua por pessoas com nível superior em contextos formais de comunicação.
Nada de romances nem poesia: o foco estava na fala e na escrita cotidiana das pessoas instruídas.
A ideia era clara: a antiga noção de norma culta era elitista demais, distante da forma como a língua era, de fato, usada nos grandes centros urbanos.
A nova definição de norma culta
Com base nos achados do NURC, o conceito de norma culta foi reformulado. Segundo o professor Fernando Pestana, ela passou a ser entendida como:
“O uso da língua (falada ou escrita) em situações mais formais de comunicação, produzido e compartilhado por indivíduos de histórico e vivência urbana com diploma de nível superior.”
Ou seja, o foco saiu dos livros e foi para as interações formais do dia a dia: reuniões, aulas, discursos públicos — e, principalmente, os meios de comunicação.
E é exatamente aqui que as coisas começam a se cruzar com a inteligência artificial.
O novo modelo: jornalismo e IA
Hoje, quando se quer saber como a norma culta se manifesta, é comum olhar para os jornais. Afinal, eles ainda seguem padrões bem definidos de linguagem formal.
São claros, objetivos, e prezam por certa impessoalidade. São, portanto, uma vitrine da nova norma culta.
Mas tem um detalhe importante: uma pesquisa recente da Thomson Reuters Foundation mostrou que 80% dos jornalistas já utilizam inteligência artificial em seu dia a dia.
Isso significa que uma boa parte dos textos jornalísticos que consumimos atualmente já passou, de alguma forma, pelas mãos de um algoritmo.
Seja na sugestão de títulos, na redação de notas ou mesmo na edição automatizada de matérias.
O futuro distópico
Os veículos de imprensa precisam de agilidade, padronização e volume — três coisas que a IA faz com maestria.
E, como vimos, os jornais e portais de notícias hoje são um dos principais referenciais da norma culta.
Junte os pontos: se os textos jornalísticos servem de modelo para o uso formal da língua e esses textos passam a ser produzidos por inteligência artificial… então a norma culta, cada vez mais, será moldada por ela.
Uma nova era
Durante séculos, foram os escritores quem definiam a elegância da linguagem. Depois, vieram os estudiosos que olharam para o uso real dos falantes letrados. Agora, talvez, estejamos entrando numa nova fase.
Uma fase em que algoritmos generativos, treinados com trilhões de palavras e otimizados para soar natural, claro e impessoal, passarão a influenciar — ou até definir — os rumos da norma culta.
Será que os próximos manuais de estilo vão citar como exemplo um texto feito por IA? Será que os estudantes, no futuro, estudarão normas moldadas por padrões algorítmicos?
Você está pronto para seguir as regras das máquinas?